Prosa Encantada
Prosa é a “forma de falar ou de escrever sem que se leve em conta (...) rima ou ritmo; tudo o que se diz ou escreve que não é em verso”. Um “discurso em linha reta” e livre, que expõe ideias, fatos ou uma história. Aqui você vai poder conhecer, por meio de uma boa prosa, parte da trajetória de pessoas encantadas e fascinadas por plantas : )
Autoria: Daniela Guimarães Simão (professora do Departamento de Biologia). Santa Maria, RS - Janeiro 2021.



O Projeto “O Reino Encantado das Plantas: Aprendendo Botânica no Jardim Botânico da UFSM” apresenta:
Prosas Encantadas
A nossa prosa de hoje é com o Professor Dr. Renato Aquino Záchia, do Departamento de Biologia, da Universidade Federal de Santa Maria, RS. Vamos juntos conhecer a sua história e de como (e quando) começou o seu encanto e estudo pelas plantas!?
Reino Encantado: Qual é a sua primeira memória da infância relacionada às plantas? Você se recorda de alguma planta, em especial, que tenha marcado esta época da vida?
Professor Renato: Na minha infância sempre tive muito mais interesse pelos bichos. Nunca liguei muito para plantas. Desde pequeno me interessavam muito os insetos. Quando eu estava na 5ª série meu professor de ciências levou a turma para fazer um levantamento de animais num laguinho natural perto da escola. Cada aluno foi com sua peneirinha, e coletamos muitos animais, que até hoje me lembro: notonecta, a barata d’água; náiade, a larva de libélula; barrigudinho; sanguessuga e muitos outros. Na aula o professor identificou as espécies, desenhou no quadro e montou uma cadeia trófica relacionando esses seres com seu papel no ecossistema. Em outra aula ele mostrou a abelha, desenhou designando suas partes, explicou como funcionava a colméia. Passei então a colecionar insetos, nas caixinhas, com alfinetezinho e etiquetinha e tudo. Enfim, no 2º ano do ensino médio, com 15 anos eu tive que fazer uma matéria que era profissionalizante no museu da escola (auxiliar de museologia). Gostei tanto que pedi para o professor se eu poderia ir trabalhar lá todas as tardes. Aí passei a fazer estágio voluntário no museu, durante todo o ano de 1979, aprendi a produzir mudas de árvores nativas, compostagem, produção de moldes de fósseis feitos em gesso, montagem de aquários, preparação de lâminas anatômicas não permanentes para ver a estrutura das folhas, montagem de coleção de insetos, produção de mudas de samambaias numa estufinha a partir de esporos, montagem de uma biblioteca de periódicos e livros do museu, técnicas de taxidermia. Embora a primeira árvore plantada por mim tenha sido um abacateiro em 1976, quando eu tinha 13 anos, após aprender a plantar árvores, eu não parei mais e fui sempre coletando todas as sementes que eu encontrava, produzindo novas mudas. Meu interesse pelas plantas acentuou-se após eu ter percebido que minha avó gostava muito de plantar novas plantas ornamentais em seu jardim. Eu ganhei dela um livro sobre plantas ornamentais quando eu ingressei no curso de biologia. Também foi minha avó que me falava dos animais, e aí comecei a me interessar pelos mamíferos também, e passei a estudar a taxonomia de mamíferos, estimulado pelas histórias que eu ouvia do tamanduá, dos tatus, do lobo guará, da jaguatirica, do gambá (“raposa”), do guaraxaim (“sorro”), e dos bugios. Na verdade quando minha avó nos levava no rio para tomar banho nas férias, eu tanto me interessava pelos bugios que eu observava no mato, como me apaixonei pela matinha da beira do rio, e acho que foi aí meu primeiro interesse pela botânica, as florestas como um todo.
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Reino Encantado: Durante a sua graduação no Curso de Ciências Biológicas, quais foram os motivos que te levaram a escolher a área da botânica?
Professor Renato: Minha primeira iniciação científica foi na entomologia, eu já tinha uma boa coleção de insetos, embora faltassem dados, sendo que só poderia ser utilizada para fins didáticos. Eu já tinha começado a colecionar samambaias em casa, pois me interessava a taxonomia, e gostava de fazer coleções de plantas e de bichos. Entretanto, a botânica em si como ciência não me interessava, em especial pelo trauma que tive na 6ª série, quando pela única vez na vida fiquei em recuperação, pois fui reprovado em ciências, por causa da botânica, eu não conseguia entender a tal da fotossíntese. Mas após cursar a disciplina de botânica sistemática e a botânica de trabalho de campo, notei que eu conseguia identificar facilmente as plantas. Fiquei amigo de um colega que trabalhava no herbário e aprendi a coletar, prensar e incluir as plantas no herbário. Isso foi em 1986, quando comecei a coletar plantas e colocar nos herbários e daí não parei mais. Quem me influenciou mais foi o professor da disciplina de trabalho de campo em botânica, pois eu participava das saídas inclusive quando não estava mais matriculado e isto me deu uma grande experiência de campo, tendo viajado por todo o estado do Rio Grande do Sul. O que me interessou na botânica foi a curiosidade de descobrir plantas que eu ainda não conhecia, e saber que eu era capaz de identificá-las.
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Reino Encantado: Quando surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa principal?
Professor Renato: Quando eu visitava o herbário quase todos os dias e falava com meu colega, eu pedia a ele dicas sobre as plantas, sobre identificação, coletava mais plantas e levava lá para colocar no herbário, ele me ajudava a identificar. Então perguntei a ele, que família faltaria para pesquisar, que eu pudesse começar a estudar no Rio Grande do Sul. Ele me disse que ninguém sabia quase nada sobre as Annonaceae. Então fiz a prova para o mestrado, fiz a seleção, ingressei e comecei a trabalhar com a taxonomia das Annonaceae. O meu interesse pela pesquisa foi aumentando quando o meu orientador do mestrado, o professor da disciplina de botânica de campo, me disse para parar um pouco de ler as descrições das espécies e começar a olhar as exsicatas no herbário sem ligar para as fichas, para que eu tivesse a minha própria opinião sobre as espécies presentes no acervo. Dito e feito, eu olhava e separava as espécies e conforme a minha própria percepção, comecei a organizá-las. Isso me fez ganhar confiança e consegui realizar minha pesquisa. Portanto, o meu interesse surgiu no momento no qual ganhei confiança, ao me sentir confortável e seguro quando tinha diante de mim centenas de exsicatas de um herbário.
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Reino Encantado: Você deve ter uma lista encantada de plantas : ) Pode nos contar qual(-is) é(são) sua(s) planta(s) preferida(s)?
Professor Renato: Bem as encantadas são as Annonaceae. São as plantas mais encantadas que existem. Suas flores são diferentes de todas outras, são cheirosas, têm sistemas de polinização misteriosos, e algumas têm frutos saborosos como o ariticum, a fruta-do-conde, o biribá e a graviola. Me encantam muito também as Malpighiaceae, com suas lindas flores, em geral amarelas, a família da acerola. Como dá prá ver tenho preferência pelas frutíferas, em especial gosto muito das árvores, das florestas e dos sistemas de cultivo em florestas, as agroflorestas em sistemas sintrópicos.
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Reino Encantado: Tem algum conselho encantado para os futuros biólogos & botânicos?
Professor Renato: Faz uns dois anos uma pesquisadora da área da pedagogia me fez a pergunta: o que levou você a ter interesse pela botânica? Fiquei pensando. Ela perguntava isso por que hoje, progressivamente, menos botânica é ensinada nas escolas. Cada vez mais há menos gente ensinando sobre as plantas, sobre a biodiversidade como um todo nas escolas. O conhecimento sobre as plantas não interessa para as indústrias, que precisam muito de matemáticos, físicos e químicos que conheçam técnicas para fazer funcionar as máquinas, programar robôs, aumentar a produtividade, para que as pessoas possam cada vez mais consumir, gastando mais dinheiro, produzindo mais lixo e eletrodomésticos com obsolescência programada para gerar, o quanto antes, mais lucros. Não veem que sem a botânica não há alimentos, remédios, móveis, papel; ou pensam pouco no amanhã, pois no futuro cada vez mais será necessário usar fibras vegetais, corantes, resinas originadas nas plantas para substituir produtos derivados de petróleo, pois é possível usar produtos de origem vegetal também para produzir carros, tintas e tecidos. Digo isso por que depois que ela me perguntou aquilo eu lembrei do professor de botânica da 5ª série, que me levou no laguinho. Pensei no professor do museu, no 2º ano do ensino médio, que me ensinou a empalhar mamíferos, e a plantar árvores como a araucária. Lembrei do meu professor de botânica de campo da universidade. Aí pensei, não, ninguém me influenciou a gostar de botânica. As plantas são minha vida, fazem parte de mim desde os tempos que tomava banho de rio e cruzava a mata ciliar reconhecendo as pitangueiras, os angicos, as guajuviras e os açoita-cavalos. Os insetos e os mamíferos eram parte da floresta misteriosa que eu amava tanto. O que eu aprendi com os meus professores que me levaram para fora da sala de aula, para ver a biologia no laguinho, nos saquinhos de mudas ou nas paisagens mais longínquas de onde começa ou de onde termina o Brasil? Eu aprendi a admirar a arte de ensinar. Ensinar aquilo que eu gosto para os outros, da forma que eu mais gosto, mostrando a natureza diretamente a eles. Aprendi que um pedaço de campo sem histórias é só um pedaço de campo. Quando alguém me mostrou um campo e contou as suas histórias, aquele campo passou a ter significado para mim, ele me pertenceu. Aprender é apreender, é absorver as palavras e as histórias que ouvimos como se fossem alimento que passa a ser o nosso sangue. Por isso hoje não consigo ser pesquisador, nem botânico, sou professor, pois isso traduz tudo que consegui aprender. A botânica é o texto do meu livro, o que me apaixonou não foi a botânica, mas foi a arte de fazer as pessoas se sentirem realizadas ao ouvirem as histórias deste livro. O meu conselho aos botânicos e biólogos é que acreditem no seu poder de criar coisas novas, novas histórias e novas maneiras de estudar a natureza, cada vez mais procurando mostrar a natureza diretamente para as pessoas, por exemplo, quando falar num vírus, mostre o microscópio que permite ver o vírus, mostre como ele funciona e mostre o vírus. As pessoas precisam ver a natureza, tocar, cheirar, e ouvir as suas histórias naturais.
* “Prosas Encantadas” faz parte das atividades do projeto de extensão “O Reino Encantado das Plantas: Aprendendo Botânica no Jardim Botânico da UFSM”, coordenado pela Profa. Daniela Guimarães Simão (Departamento de Biologia), da Universidade Federal de Santa Maria - Instagram: @reinoencantadodasplantas
Autoria: Daniela Guimarães Simão (professora do Departamento de Biologia). Santa Maria, RS - Janeiro 2021.